segunda-feira, 9 de abril de 2018

Minha dor de dente


Sem nenhuma preocupação em fazer uma elucidação filosófica sobre o assunto, quero apenas relatar algumas impressões minhas sobre a obra Memórias do Subsolo de Fiodor Dostoievski. Embora não tenha terminado a leitura, tem uma parte que martela em minha cabeça insistentemente, que diz sobre dor de dente. 
"Os seus gemidos tornam-se maus, perversos, vis, e continuam, dias e noites seguidos. E ele próprio percebe que não trará nenhum proveito a sim mesmo com os seus gemidos. Melhor do que ninguém, ele sabe que apenas tortura e irrita a si mesmo e aos demais. Sabe que até ao público, perante o qual se esforça, e toda a sua família já o ouvem com asco, não lhe dão um níquel de crédito e sentem, no íntimo, que ele poderia gemer de outro modo, mais simplesmente, sem garganteios nem sacudidelas, e que se diverte, por maldade e raiva. Pois bem, é justamente em todos esses atos conscientes e infames que consiste a volúpia. "Eu vos inquieto, faço-vos mal ao coração, não deixo ninguém dormir. Pois não durmais, herói, que anteriormente quis parecer, mas simplesmente senti vós também, a todo instante, que estou com dor de dentes. Para vós, eu já não sou o homem ruinzinho, um vagabundo. Bem, seja! Estou muito contente porque vós me decifrastes. Senti-vos mal, ouvindo meus gemidos ignobeizinhos? Pois que vos sintais mal; agora, vou soltar, em vossa intenção, um garganteio ainda pior.  (p.27,28)" 
Deixando que as palavras me invadissem, identifiquei-me rapidamente. Simplesmente me vi. E, de repente, minha consciência não conseguiu se desviar diante do erro que estava em mim: era eu aquela pessoa com dor de dentes. Difícil foi engolir as palavras depois de me ver no papel.

Por que eu me identificaria com um sujeito tão arrogante? Por causa de minha arrogância velada! Quantas vezes fui indiferente ao mundo e seus dilemas, mas desejei que todos parassem suas vidas para viver as minhas dores? Quantas vezes quis atenção de todos perante o meu sofrer, entretanto fingi não ver o choro alheio? E o pior de tudo, senhores, não contradiria Nietzsche quando disse que "a sede de compaixão é a sede de gozo de si mesmo, e isso à custa do próximo".

Não retrato aqui um personagem, mas a mim mesma. Se porventura me gloriei de virtude alguma, esqueci-me de minha deplorável condição. É somente por meio de Cristo que recebemos a justiça que não vem de nós, mas inteiramente dele. Como amar o próximo, se tudo que queremos é demonstrar suposta superioridade a todo instante? Como considerar os outros melhores que nós mesmos, se tudo que queremos é sermos servidos? Ora, não há outra forma a não ser por Aquele que "embora sendo Deus, não considerou que ser igual a Deus fosse algo a que devesse se apegar. Em vez disso, esvaziou a si mesmo; assumiu a posição de escravo e nasceu como ser humano. Quando veio em forma humana, humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz." (Filipenses 2: 6-8)

Portanto, que esqueçamos nossas dores de dentes e vejamos que os outros também sofrem. E não só isso, que tenhamos pelos sofredores aquilo que mais desejamos quando o mal nos aflige: compaixão. 


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